terça-feira, 26 de março de 2013

Dos créditos submetidos à recuperação judicial



Dos créditos submetidos à recuperação judicial

Cumpre observar que nem todos os créditos estão sujeitos ao juízo universal da recuperação judicial, eis que a Lei 11.101/2005 explicitamente excetuou algumas obrigações do devedor, mesmo porque não poderiam se submeter ao crivo do juízo da recuperação.
Assim, inicialmente o antiquado e autoritário Código Tributário Nacional, editado na época da Ditadura Militar e que já deveria ter sido extinto há muito tempo, no art. 187[1], diz que o crédito fazendário não é sujeito a nenhum tipo de concurso, o que não deixa de ser um absurdo, mesmo porque em países mais adiantados que o nosso, o Estado não goza de privilégio nenhum, principalmente porque a sonegação de impostos é punido com penas graves, ao passo que o Brasil é um paraíso de delongas a favor dos devedores...
Os créditos tributários seguem uma dinâmica própria, prevista na Lei 6.830/1980, criada também na Ditadura Militar e que já deveria ter sido defenestrada de nossa legislação há muito tempo, porque confere ao Estado o superpoder de executar seus créditos tributários com mãos de ferro. Por isso, é excepcionado na legislação empresarial atual, que coloca somente aqueles que efetivamente produzem no processo recuperacional.
Também não tomam parte no processo de recuperação aquelas obrigações que não podem ser exigidas diretamente do devedor[2], como as seguintes enumeradas:
a) obrigações a título gratuito, desde que não exista nenhum tipo de conluio entre o devedor e o credor e, ainda por cima, que não exista contra o devedor nenhuma demanda capaz de reduzi-lo à insolvência, tudo conforme se vê do art. 593 do Código de Processo Civil[3], ou, ainda, quando não haja anuência de todos os credores do devedor, existentes ao tempo da deliberação gratuita, incluídos aí os credores trabalhistas, tributários, preferenciais, etc.
b) também não se submetem ao juízo da recuperação as despesas que o credor fizer para tomar parte no processo onde se fixa o juízo universal, mesmo porque é uma obrigação natural do credor para com o devedor. Se o devedor tem a obrigação de apresentar a relação de credores, sob pena de responder pelo falsum, é claro que o credor que quiser se antecipar ou tomar parte sponte sua tem a obrigação de recolher as custas necessárias e não poderá cobrá-las do devedor.
No entanto, é mister que se frise, que eventual sucumbência não está incluída na isenção legal, mesmo porque decorre a sucumbência do próprio direito de demandar, sendo expressamente consignada no art. 5º, inciso II, da Lei 11.101/2005 tal exceção.
As chamadas dívida ilíquida da recuperanda não é objeto da recuperação judicial, em tese, mesmo porque a própria devedora poderá apontar um valor que entenda devido e o credor não concordar, sendo que nesse caso, enquanto não solucionado o quantum debeatur não é possível considerar o valor do credor como verdadeiro, sendo que o valor apresentado pelo devedor é o que deve prevalecer, para todos os efeitos, inclusive para tomar parte em eventual Assembleia Geral de Credores, enquanto não julgado o crédito corretamente.
Quando a controvérsia é sobre quem deve pagar (an debeatur) com muito mais razão é que não se pode incluir tal crédito na recuperação judicial de empresa, mesmo porque aqui é o caso de negação da obrigação, diferentemente da anterior situação, eis que lá a devedora diz que deve, mas considera o valor menor, enquanto que aqui nega peremptoriamente a existência de obrigação de pagar. Portanto, deve ser solucionado no juízo apropriado quem deve pagar (an debeatur).
De outro lado, o lobby exercido pelos maiores credores do país para a confecção de uma legislação que lhes fosse benéfica, acabou por criar uma categoria de credores ultraprivilegiados e inatingíveis, a fim de que seus créditos não fossem afetados pela recuperação judicial de um devedor, em flagrante contraste com o próprio instituto da recuperação.
Refiro-me especificamente aos créditos dos titulares de garantias variadas, excetuados no art. 49, § 3º da Lei 11.101/2005, que o traslado simples do mesmo demonstra que há uma gama considerável de personagens que não são atingidos pelo pedido de recuperação, quais sejam:
       § 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
Por força do dispositivo acima os detentores de créditos com garantias como o credor fiduciário, o arrendador mercantil e aqueles que alienam com reservas de domínio ficariam fora do processo de recuperação. Ficariam, gize-se, porque é muito comum o credor especial fazer contratos com o devedor sobre o estoque rotativo da empresa como sói acontecer com empresas fornecedoras de materiais de construção, eletrodomésticos, secos e molhados, etc. e em face do ajuizamento das ações de recuperação judicial tentarem se livrar da recuperação judicial alegando seu crédito especial.
Ora, em várias situações me deparei com créditos constituídos sobre bens fungíveis, que facilidade de troca é inerente à própria estrutura da empresa. E o credor, no afã de constituir-se como credor com reserva de domínio, fidúcia, ou arrendamento mercantil procura apreender quaisquer bens do devedor, a fim de que, numa possível demanda recuperacional, pretenda se livrar do ônus desse procedimento, simplesmente alegando sua preferência e fazendo-se firme no art. 49, § 3º da Lei 11.101/2005.
Entretanto, a verdade é outra, pois se os bens são fungíveis e o penhor ou garantia se prende a bens do estoque da empresa, cuja própria natureza do bem é consabido que se não mais existirá no momento de possível execução, tal credor fica apenas com o “título”, sem a garantia, que é o bem dado pelo devedor.
Por isso, numa determinada ocasião escrevi em um procedimento recuperacional que o bem fungível não possui certidão de nascimento, certidão de casamento, registro no Detran ou no Cartório de Registro de Imóveis e o fato de o credor tido como extrarecuperacional ter apenas o título, não lhe garantia o direito de excutir separadamente os bens da empresa recuperanda, que, na época da fixação do título, não se preocupou com a fixação da garantia em bens infungíveis ou de maior valor, ou, o que é pior, não se preocupou sequer em conceder o crédito, que depois se via próximo da exclusão do procedimento recuperacional.
Pelo art. 49, § 4º da Lei 11.101/2005[4], aqueles que fizeram adiantamentos de câmbio, também não são sujeitos aos efeitos da recuperação, sendo que ficou bastante claro, como a luz solar, que Lei de Recuperação de Empresas e Falências sofreu um grande ataque, na sua confecção, dos banqueiros deste país, para evitar que seus “preciosos” créditos não fossem incluídos na recuperação, eis que se trata de valor proveniente de instituições financeiras, mesmo porque um empresário não pode comprar diretamente um bem de um fabricante estrangeiro, sendo obrigado a se valer das instituições financeiras para que o seu negócio possa fluir naturalmente[5].
Além disso, ficou consignado que os créditos garantidos com penhores sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários poderiam ser substituídas ou outras garantias, ou ainda, renovadas até o valor das garantias, mas, nesse caso, o recebimento de eventual garantia ficaria depositado em uma determinada conta vinculada, dentro do período de suspensão das ações e execuções do devedor (180 dias a contar da data do deferimento do processamento da recuperação judicial), nos termos do art. 49, § 5º da Lei 11.101/2005[6].
Importante observar que os credores do devedor não poderão, naqueles 180 dias da suspensão das ações e execuções, movimentar os autos contra a empresa em recuperação, mas isto não significa que não poderão mover (ou continuar a mover) as ações e execuções contra os devedores solidários, os coobrigados das obrigações assumidas pela recuperanda, tais como avalistas e fiadores da recuperanda, assim como os obrigados de regresso, ou seja, contra aqueles que têm direitos e deveres para com a recuperanda, tudo isso nos termos do art. 49, § 1º da Lei 11.101/2005[7].
Finalmente uma última consideração deve ser feita, no que diz respeito aos valores a serem considerados para o ajuizamento da recuperação judicial. É que os créditos se compõem de uma série de encargos legais e/ou contratuais/convencionais, como multas, juros, correção monetária, etc., principalmente porque cada credor procura se prevenir de eventual moratória utilizando um expediente que lhe cause os menores danos possíveis.
Daí que a contratação dos juros, correção monetária e multas são devidas até a data do ajuizamento da moratória, valendo para todos os efeitos do processo da recuperação. Por tal razão, ficou expresso no art. 49, § 2º da Lei 11.101/2005 que as obrigações do devedor seguirão aquilo que foi convencionado anteriormente. Se houver uma decisão em sentido contrário, aprovado pela Assembleia Geral de Credores, ou no caso de não haver impugnação ao plano de recuperação apresentado pelo devedor, seguirá a nova dinâmica, eis que haverá uma novação da dívida anteriormente existente[8].        



[1]  Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.
Parágrafo único. O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem:
I - União;
II - Estados, Distrito Federal e Territórios, conjuntamente e pró rata;
III - Municípios, conjuntamente e pró rata.
[2]  Art. 5o Não são exigíveis do devedor, na recuperação judicial ou na falência:
I – as obrigações a título gratuito;
II – as despesas que os credores fizerem para tomar parte na recuperação judicial ou na falência, salvo as custas judiciais decorrentes de litígio com o devedor.
[3] Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:
I - quando sobre eles pender ação fundada em direito real;
II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;
III - nos demais casos expressos em lei.

[4] § 4o Não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial a importância a que se refere o inciso II do art. 86 desta Lei.
[5] Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro:
II – da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3o e 4o, da Lei no 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente;
[6] § 5o Tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4o do art. 6o desta Lei.
[7] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 1o Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso.

[8] Art. 49, § 2o As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.